domingo, 7 de março de 2010

Eu sei, mas não devia

"Eu sei, mas não devia.
Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento
de fundos e a não ter outra vista que não
seja as janelas ao redor.
E porque não tem vista,
logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora logo se acostuma
a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo
se acostuma a acender mais cedo a luz.
E a medida que se acostuma, esquece o sol,
esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã
sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler jornal no ônibus porque não pode
perder o tempo
da viagem.
A comer sanduíche porque não dá pra almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado
sem ter vivido o dia.
(...)
A gente se acostuma a esperar
o dia inteiro e ouvir no telefone:
hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem
receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando
precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar
por tudo o que deseja e o de que necessita.
(...)
A gente se acostuma a coisas
demais para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber,
vai se afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá.
(...)
A gente se acostuma para não
se ralar na aspereza,
para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas,
sangramentos, para esquivar-se
da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida
que aos poucos se gasta e, que gasta,
de tanto acostumar, se perde de si mesma."
Marina Colassanti


P.S.: Eu sei e devia acostumar-me...mas tá dificil...
P.S.2: Obrigada à Inês por ter trazido músiquinha ao meu café!